Páginas

terça-feira, 17 de julho de 2012

Irmã - Imaculado Sonho


Um ladrão roubou meu coração. Mergulhou fundo dentro de mim e levou com ele o que dizia lhe pertencer. Fui a sua procura. Distanciei-me da salvação e também mergulhei. Uma voz diz: ‘Vá e siga o caminho, não desviei seu olha. A sua frente o mal espera, feche os olhos para enxergar a luz’
A minha frente ele. Dei o primeiro passo.
Ao meu lado ele. Tremi por medo.
A minhas costas se curvaram com seu peso.
Abra os olhos. Ele me diz, mas não faço.
Dançamos na escuridão.
Abra os olhos. Choro, mas não faço.
A floresta se silencia em resposta.
Abra os seus belos olhos Meissa, ele pedi, então o faço.
A minha frente o que julguei perdido se estende até mim como um suspiro antes da morte.·.



Vega

- Você gosta de Sereias? – um garotinho negro gritou do alto do monte.
Parei de arrancar as ervas-daninhas do solo, e forcei as vistas, tentando reconhecê-lo.
- Desça daí antes que caia! – gritei ao vê-lo se levantar com dificuldade.
Ele se apoiava em um pedaço de pau e me chamou com a mão.
- Estou ocupada para brincar agora. Vá embora!
Ele desceu o monte e o que para mim era um garotinho a distancia, mais de perto se mostrou um rapaz.
- Já acabei de brincar. – ele disse se ajoelhando a minha frente. – Onde estão seus pais?
Ele estava sem camisa e tinha uma feia cicatriz de queimadura no ombro direito. Seu rosto redondo estava sujo se fuligem e seus olhos negros procuravam algo em meu rosto.
- Estão em casa.
Um som de mato queimando chamou minha atenção, e quando me virei, meus olhos arderam ao ver minha casa queimando.
Me levantei em um pulo e já começava a correr quando fui impedida.
- Venha comigo. – ele segurava minha mão com força. – Já morreram, não é o que queira?
Em minha mente as imagens de hoje mais cedo, quando discutia com meus pais, e o pedido que tinha feito... Levei a mão à boca, pasma. Aquilo não poderia ter sido obra minha. Eu apenas tinha me irritado com papai e o quis morto, mas já tinha passado.
- Não! – tentei me soltar, mas ele me segurou novamente. - Não é verdade...
- Você precisa vir comigo. – ele me olhava perverso.
- O que deu em você?! É minha família!  – uma aflição cresceu e já descontrolada, me embreei na mata.
Daria tempo, daria tempo sim. Eu conseguiria encontrá-los com vida. Eu sei que sim. Me iludia a medida que via os restos de madeira, que a poucos minutos era a minha casa.
- Vega! – ele chamou meu nome, mas eu não havia lhe dito.


Meissa 

- Acordem. – vovó balançou minhas pernas. Virei, fechando novamente os olhos.
O som dos tambores ficou mais forte, mas ainda era tão cedo para a comemoração começar.
- Acorde Meissa! – recebi uma tapa na coxa.
Sentei-me prestes a chorar, e vovó tampou minha boca. Olhei para Alula, ela já estava em pé, vestida com a pele do urso que lhe dei de presente, com o rosto sujo de barro e segurando uma das pedras que vovó usava para cortar o pescoço dos pombos antes de nós assarmos.
- Ajude sua irmã a se vestir, se apresse. – ela me empurrou e eu caí sobre Vega, ela ainda dormia, mesmo com toda a zoada do lado de fora.
Peguei seus braços e os enfiei dentro da pele, Vega era pequena demais, teria que amarrar a pele com meus fios de couro, levei a mão a cintura e não os encontrei. Deveria ter deixado cair em algum lugar, enquanto brincava com os meninos.
- Chega! Sua demora irá nos atrasar. Deixe Vega, que eu a levo. Se vista e siga sua irmã.
Vovó bateu em minhas mãos, e levou Vega para o fundo da cabana, e a enrolou em um fio dourado.
- Meissa! – Alula repreendeu minha demora e saiu, eu enfiei um dos panos de vovó na cabeça e segui Meissa, correndo para fora.
O calor do fogo me fez recuar, olhei em choque toda a tribo pegar fogo. A casa de Prio queimava, era uma chama alta, e ele poderia estar ali dentro. Avancei, iria mergulhar no fogo para salvá-lo se necessário, mas um homem em chamas passou por mim, gritando, pedindo por água e eu parei.
- A vovó não vai brigar mais com você! Me siga. – Alula me puxou pelo cabelo e nos embreamos nas matas.
Olhei para trás varias vezes, vendo as chamas se transformarem em uma luz alaranjada, no meio do lusco-fusco da noite. Alula corria tanto, pulava como um tigre, tão rápida que até para mim estava difícil de alcançá-la.
- O que está acontecendo irmã? – perguntei estendendo o braço para alcançar sua mão.
- Faça silêncio! – ela parou e me empurrou ao me ver se aproximar. – Podem nos ouvir, se cale.
Tampei a boca, tentando não deixar os ruídos do choro escaparem. Arregalei os olhos, tentando ver se alguém nos observava.
- Estou com medo Alula. – confessei. Ela pegou na minha mão, seu primeiro sinal de carinho em onze anos.
- Se você continuar assim eu te largo. – e começamos a correr novamente.
Um vendo frio seguia as nossas costas, e aflorava ainda mais o medo dentro de mim. Estava em pânico, meu corpo não fazia mais parte de mim, ele seguia os comandos de Alula, que parecia mais alta, mais velha. Eu nos olhava correr, e sentia que a qualquer momento uma mão atravessaria a noite e nos roubaria para ela.
Cortamos a floresta como flechas, e paramos, observando o alto do morro, que brilhava, graças ao brilho de Vega e vovó.
- Vega acordou, é melhor que você corra rápido agora. – Alula me soltou e pulou sobre as pedras, escalando o morro como uma aranha.
- Irmã. – escutei me chamarem e choraminguei, correndo atrás de Alula.
Eu não sabia como correr como ela, eu não era rápida como deveria e meu choro não a sensibilizou. Alula não olhou para trás nenhuma das vezes que a chamei, e aquilo não era normal.
As árvores começaram a se balançar, e o som dos troncos sendo partidos como gravetos era a minha motivação para não parar de escalar. Alguma coisa nos seguia, e não parava momento algum, então não poderia fazer o mesmo. Alula já estava no topo, ela sabia o que era, ela e vovó fugiram, e isso nunca aconteceria se não houvesse um motivo ruim o suficiente para aquilo.
 - Diz a ela vovó. – Vega estendeu os braços para mim quando alcancei o topo da montanha.
Caí ao seu lado, cansada e arfante. Os tambores ecoavam pela floresta e as batidas de pisadas, tão altas que só pertenceriam a gigantes.
- Alula você terá o que deseja. – vovó chorava ao lhe entregar seu colar, a sua pedra brilhante.
Vovó nunca tinha deixado nenhuma de nós se quer encarar seu colocar por muito tempo e agora o entregava para Alula. Senti o ar me faltar.
- O que está acontecendo? – perguntei, sentindo os primeiros pingos de chuva em meus ombros.
- Estão vindo matar você. – Vovó disse, enquanto Alula chora em minha frente pela primeira vez. Sobressaltei-me e Vega pousou a cabeça em meu ombro, caindo novamente no sono.
- E a senhora não fará nada? – perguntei, achando errado seu comodismo.
Deveríamos estar fugindo para longe, nos esconder em outro lugar, chamar os Caelos, mas não ficar paradas e esperar como os Grandes Reis.
Corri para perto dela, a abracei com força, e olhei para o alto, de onde os dois pontos viraram apenas um, e veio como um monstro de fogo, nos afogando em sofrimento e desaparecendo com nós e nossa pungente dor.
- Também serei morta. – ela fechou os olhos, triste.
- Alula, Vega...? Não deixarei que morram!– me desesperei, abraçando Vega.
- Eu não morrerei irmã. – Alula disse, levantando o queixo. – Nem Vega.
Os tambores param de tocar. Alula mesmo orgulhosa se encolheu próxima a mim. Vovó se voltou para o outro lado, e cerrou os olhos, como se encarasse outro olhar tão intimidador quanto o seu.
- Mu. – ela cumprimentou o céu de chuva.
Um rugido veio como resposta. Tão forte, tão alto, trazendo uma lufada sobre nós. Vovó continuou parada, rígida, como uma fortaleza, poderosa.
- Meissa, não quero que pense que te abandonei. – duas luzes avermelhadas ganhavam vida no céu. – Eu apenas não poderei estar presente.


Alula


 - Afoguem todos. – ordenei, mas continuaram parados. – Andem!
- A senhora não está pensando com clareza. – Murlin se aproximou e sussurrou em meu ouvido.
- Então o que deseja que eu faça? Se os matarmos suas profecias não se realizarão. Sem boca não a fala. – mas ele não concordou.
Todos continuaram parados e senti meu ódio arder. Ninguém respeitava meus comandos.
- Uma ordem se fez. Cumpram! – Murlin mandou e todos saíram.
- Há mulheres entre eles. – ele me sussurrou novamente.
Era terrível não ter clareza. Minha mente se afogava em uma imensa falta de sentido.
- Se espera meu cessar, não terá. – e me fechei em silêncio.
O grito das mulheres, que imploravam em igual com os dos homens, não me afetou. Que se façam heróis, por toda procura que fizeram.
- Eles não morrem. – Murlin se afligiu. – Apenas sofrem...
- Conselheiro, dispenso seu trabalho, não o quero mais a meu serviço.
- O que fiz? – sua surpresa se fez visível.
- Sempre ao meu lado. Enxergando através das nevoas da minha visão e me encaminhando para a solução. Não lhe nego agradecimentos sinceros, se é o que lhe falta, mas odeio fraqueza.
- Não é fraqueza minha Rainha, é justiça! Tivemos ordens para queimar as plantações; estão sem comida! Entupimos os poços, ficarão sem água mesmo que procurem. Na redondeza todos temem sua ira sem fim.
- Você acha que faço errado ao matar as sementes de meus inimigos. Pobre velho, o que os anos de vida não lhe trouxeram me entregaram de bandeja. Vá embora, não tem mais obrigações para comigo.
- Eu lutei ao lado de seu pai, O comandante dos Grandes Reis. Como pode agora minimizar nosso passado e minhas glorias.
- Não seja vaidoso. – olhei os últimos riscos de fogo e cocei os olhos.
- Vaidade! – disse ofendido. Visivelmente alterado, inconformado com meu descaso.
- Se não vai, eu vou. Fique você e suas glórias, enquanto eu, sem nenhuma, saiu para dar espaço ao seu Ego.
Ele bateu em meu rosto, cuspiu em minha túnica, rasgou a barra de meu vestido e arrancou de meu dedo o anel que foi de meu pai.
- Faço o que ele faria se estivesse vivo.
Alguns guardas já o tinham tirado de perto de mim e apenas esperavam uma de minhas ordens, mas pedi que o soltassem.
- Murlin você pode repetir meu mandado? – os homens estavam assustados com minha calma.
- Obedeçam a Rainha! – Murlin disse e se fez cumpri.
- Murlin, ainda acha que pareço com minha mãe?
- Apenas a aparência.
- Sua sinceridade me encandece. – toquei seu rosto, sentindo a aspereza de sua barba. – Quando você olha para mim é ela que vê.
- Alula foi uma bela mulher. Que soube governar junto ao seu pai todo o reino, sem nunca ter um camponês como inimigo.
- E eu? O que me diz a respeito de tudo? Você me viu crescer, me ensinou a lutar e cuidou de meus passos na falta de um pai e uma mãe.
- Você nunca foi boa. Fria e diabólica, disfarçada em uma bela aparência. Dita ordens sangrentas com voz aveludada. Seu veneno escorre por entre seus lábios vermelhos, tingidos com a vida de cada homem ou mulher que se nega ao seu capricho.
- Menos você. – me aproximei de seu rosto para ver a ultima das feiticeiras ser jogada no rio. – Hoje, você dorme comigo.
- Rainha você não passa de uma criança... – sua voz era de vergonha.
Ninguém sabia, mas eu sim. Sempre entendi seu olhar malicioso, sua voz murmurosa em meu ouvido, aceitado todas minhas exigências, cumprindo meus pedidos como um capacho. Um homem apaixonado por uma imagem, será sempre um submisso.
- Deixarei que me coloque no devido lugar mais tarde. – cortei o espanto de todos. - O levem para meus aposentos!
Tirei a pele e o capuz que me protegiam do frio da noite. Tirei os sapatos e caminhei para a ponte. Parei no ponto mais alto, e inspirando com prazer, debrucei-me sobre a marquise, e de onde estava, vi em polvoroso, os corpos boiarem sem vida, sendo levados pela correnteza.
- Agora repita mulher! Diga que sofrerei! Diga que morrerei cega e louca! Diga que meu reino se voltará contra mim! Olhe para você, daí de onde está minha imagem reluz tão bela quanto a vejo pelo reflexo?
Ri animada. Aquilo merecia uma festa. Decidi que haveria uma festa, uma enorme festa, com muita música e todos estavam convidados a se divertirem comigo.
E como a humanidade é pecaminosa. O que um copo de álcool não faz! O que mulheres seminuas não são capazes de fazer, de ganhar por uma pedra de ouro. Se todas fossem tão inteligentes quanto deveriam, o mundo seria menos agressivo, e portanto mais chato.
- Me traga a menina. – apontei para a criança encolhida no fundo do salão.
- Que menina, minha Rainha? – o guarda ao meu lado olhou a mesa a nossa frente, sem vê nada.
Muitos se viraram, procurando, mas não mudei de direção.
- Serei obrigada a levantar?! – a falta de paciência já me dava sinais.
Até que três homens a agarraram e pararam com seus gritos e pontapés. A colocaram a minha frente, ajoelhada, e algo em seus olhos me desanuviou a mente.
- É ódio o que vejo? – lhe perguntei.
Era mais, misturadas as suas lágrimas, era nojo, ira, o que havia em mim. Era o meu espelho, a primeira vez que me enxergava, que via meu real reflexo.
- A levantem. – disse mortificada.
Os homens me obedeceram, curiosos com meu deslize.
Eu estava sem controle, e senti meu queixo tremer. E só houve uma única vez em que me senti assim. Quando fui jogada do alto da torre Leste. O único momento em que não tive motivos para ordenar, nem ninguém para cumprir. Escorreguei para a escuridão, com a euforia de um filho que retornava para casa.
- Onde estão seus pais?
- Assassinados por você.
- Não... Não me acuse dessa maneira! Tenho minhas mãos limpas, não fui eu quem os matou.
- A Rainha é a senhora!
- Sim, sou. E não haverá outra tão cedo. Recebi esse fardo de um pai morto em batalha e de uma mãe levada pela mesma doença que levou a de muitos nesse salão.
Ela permaneceu impassível.
- O que faz aqui? Isso não é ambiente para uma criança.
- Creio ter a mesma idade da Rainha. O posto que mantem não lhe dará mais anos de vida.
- Em que posso ajudá-la. – um Ooh se fez ecoar no enorme salão.
Não era comum ajudar ninguém, mas me senti obrigada a ressarci a divida que tinha com ela.
- Minha liberdade.
- Mas não sou sua dona. Não tenho e repudio a escravidão em minhas terras.
- A senhora me mantem presa a sua terra. A mim e meus ancestrais, com sua autoridade infinita e arrogância. Sua frieza levou gerações de minha família, matou a única que tinha. Agora sozinha, não tenho como manter minha casa, nem me alimentar.
- Então lhe darei a liberdade que tenho. Troco de lugar com você. E a prisão que se encontra será a minha, e a liberdade que usufruo sua. Se levante e que todos aqui presentes se ajoelhem. Pois a nossa frente à nova Rainha, filha desse solo em que pisamos.
Ajoelhei-me a sua frente e senti o sangue da moça respingar em meu rosto, quando Murlin a decapitou e tomou o trono de nossas mãos.